Entre o Boletim e a Vida Real: A difícil arte de educar no século XXI

Há tempos estamos anunciando uma revolução educacional. Faz tempo que a escola prometeu se reinventar. Alunos protagonistas, pensamento crítico, escuta ativa, resolução de problemas complexos. As palavras estão na ponta da língua de educadores, gestores e documentos oficiais. Mas, quando se abre a porta da sala de aula, o que ainda se vê? Fileiras de carteiras. Silêncio como sinal de disciplina. Provas individuais. Notas de participação. E uma cobrança: “isso vai cair na prova, professor?”

A escola diz que quer formar cidadãos do século XXI, mas ainda mede competência com régua do século XIX. As famílias dizem querer filhos preparados para o futuro, mas continuam interpretando boletins como se fossem relatórios de produção. O aluno deve ter criatividade, pensamento crítico, inteligência emocional, mas não pode errar. Não pode demorar. Não pode sair do padrão.

Queremos inovação, mas com boletim. Queremos criatividade, mas dentro das margens da folha pautada. Queremos empatia, mas premiamos a competição. E, no meio disso tudo, a relação entre escola, família e aluno vai se desgastando – porque todos esperam, mas ninguém muda de verdade.
Famílias querem filhos preparados para o futuro, mas pedem para a escola “reforçar a tabuada” porque “isso caiu no simulado”. Pais desejam filhos felizes, mas cobram boletins impecáveis como se a infância e a adolescência fossem um estágio para o ENEM. E a escola? Bom, ela tenta se mover… mas quando propõe algo diferente, ouve: “mas no meu tempo não era assim. Tire notas boas, entre numa boa universidade, arrume um bom emprego.”Mas… e agora? Vivemos o paradoxo da inovação desejada, mas temida.

O Fórum Econômico Mundial já anunciou: mais da metade das crianças que entram na escola hoje vão trabalhar em empregos que ainda nem existem. Enquanto isso, o próprio mercado de trabalho já começa a se transformar rapidamente. A inteligência artificial está eliminando funções repetitivas. O LinkedIn valoriza portfólios, soft skills, experiências de vida e capacidade de adaptação. O que se espera de um profissional? Resiliência, colaboração, empatia, pensamento crítico, resolução criativa de problemas.

Ainda educamos como se estivéssemos em 1920: série por idade, como se o nascimento em um determinado ano definisse maturidade e prontidão para aprender. Tentamos encaixar alunos únicos, com trajetórias distintas, em séries rígidas, como peças numa linha de montagem — herança direta da Revolução Industrial e das ideias iluministas que colocavam o saber em prateleiras organizadas.
E o que a escola oferece? Um currículo fragmentado, engessado em séries baseadas em ano de nascimento. Como se todo aluno de 10 anos estivesse pronto para o mesmo conteúdo. Como se fosse possível formar pessoas complexas com métodos simples, desenhados para um mundo que já não existe.

Aí vêm as perguntas inevitáveis:

– Por que sentar um atrás do outro, se queremos colaboração?

– Por que não permitir combinações de séries, se o ritmo de aprendizagem é diverso?

– Por que não incentivar provas em grupo, se o mercado de trabalho é colaborativo?

– Por que fazer provas individuais, se o mercado valoriza trabalho em equipe?

– Por que tirar média, se aprendemos de formas tão diferentes e em ritmos tão distintos?

– Por que dar nota por participação, se existem tímidos na sala?

– E, por fim, por que ainda avaliamos todos no mesmo tempo e do mesmo jeito?

Educar hoje é navegar contra correntes muito fortes. Quando a escola tenta romper padrões e buscar o essencial – aprender a aprender, saber conviver, resolver, criar, empreender -, ela é, muitas vezes, desacreditada. Afinal, “não é assim que funciona”, dizem. “No meu tempo era diferente.” Era. E o mundo também. Pais e mães seguem esperando que a escola prepare para o vestibular, mesmo que ele esteja cada vez mais distante das competências reais da vida. Enquanto isso, os alunos vão se afastando da escola, desmotivados, ansiosos, deprimidos. Há algo profundamente errado quando a formação de um jovem de 17 anos é medida pela sua capacidade de resolver uma equação do segundo grau isolado, no papel, em silêncio.

Ainda tratamos educação como sinônimo de acúmulo de conteúdo. Como se o aluno fosse um recipiente a ser preenchido — e não um ser em construção. Ignoramos a potência de suas vivências, emoções, diferenças. Ignoramos que o verdadeiro saber é construído em relação: com o outro, com o mundo, com as perguntas que ainda não têm resposta.

Educar, hoje, exige coragem.Para enfrentar o sistema, mas também para enfrentar os próprios medos: o medo de errar, de mudar, de abrir mão do controle. É preciso coragem para ensinar menos e formar mais. Para soltar um pouco os trilhos e aceitar que o caminho não é igual para todos. E, mais do que nunca, precisamos de famílias parceiras nessa travessia — não apenas para aplaudir resultados, mas para entender processos. E que, às vezes, o que realmente forma um aluno não é o que está no conteúdo programático, mas o que a vida lhe traz de forma imprevisível.

E é aí que a família entra, não como cliente, nem como avaliadora de desempenho da escola. Mas como parceira. Parceira de um processo que é coletivo, dinâmico e humano. Que exige presença, escuta, apoio e confiança — mesmo (ou principalmente) quando o boletim não vem tão azul quanto se esperava. Porque, no fim das contas, educar nunca foi preparar para a prova.Educar é preparar para a vida. E essa, como todos nós sabemos, não tem gabarito.

Edição 238

O que deseja pesquisar?