Quando o crime vira espetáculo – e esquecemos o que é ser humano

Nunca foi tão fácil transformar a dor em entretenimento.

A série Tremembé, uma das mais assistidas do momento, escancara isso. Baseada em personagens reais, a produção mostra a convivência de criminosos famosos na Penitenciária 2 de Tremembé, em São Paulo — conhecida como o “presídio dos famosos”. Ali, nomes como Suzane von Richthofen, Elize Matsunaga e outros condenados por crimes bárbaros compartilham celas, estratégias, disputas de poder e alianças de sobrevivência.

A série é bem produzida. É envolvente. Choca. Prende a atenção.

Mas é aí que mora o problema.

Estamos cada vez mais fascinados pelo horror. E o horror, quando bem roteirizado, vira produto. Vira streaming. Vira audiência. Vira meme.

E no meio disso tudo, esquecemos de perguntar:

Quem são os heróis das nossas narrativas?

A lógica invertida do holofote

Vivemos numa sociedade que normaliza o absurdo enquanto invisibiliza o essencial.

Heróis reais — como o policial que salva uma criança de um incêndio, o médico que trabalha em zonas de guerra, o professor que transforma gerações em silêncio — quase nunca ganham manchetes, séries ou trending topics.

Mas criminosos, ganham roteiros, figurinos e até empatia do público.

Não se trata aqui de negar o valor de discussões profundas sobre justiça, reabilitação ou sistemas prisionais. Isso é urgente e necessário.

O que estamos criticando é a espetacularização do crime. A transformação da barbárie em entretenimento.

Pior: o lugar de destaque que damos a pessoas que, no mínimo, deveriam cumprir suas penas com o devido esquecimento.

Como disse Hebe Camargo, em um de seus momentos mais corajosos da televisão brasileira, ao se dirigir a Suzane von Richthofen:

“Você tem que mofar na cadeia.”

Era televisão. Mas era verdade. Hebe não cedeu ao carisma fabricado. Nem à narrativa do espetáculo. Ela foi ética.E talvez nos falte um pouco disso hoje.

A cultura do espetáculo e o risco para a educação

Toda narrativa ensina algo.

Toda história que consumimos — seja na escola, nas redes ou na televisão — está formando valores, ainda que de forma silenciosa.

E é aqui que entra a responsabilidade da educação:

Não podemos romantizar o erro.

Não podemos aplaudir o que destrói.

Não podemos dar palco ao que deveria apenas cumprir sua pena — com justiça, sim, mas sem glória.

Ao transformar criminosos em protagonistas, corremos o risco de reforçar uma mensagem perigosa para as novas gerações: que vale tudo por um lugar em cena. Que o que importa é ser lembrado — não importa como.

Isso é o oposto da educação.

Educar é formar seres humanos com valores, caráter, limites e responsabilidade.

Educar é apontar para a ética, mesmo quando o mundo está apontando para os likes.

A verdadeira reconstrução é ética. E humana.

E que fique claro aqui, não se trata de censura. Mas de consciência.

A mídia, as escolas, as famílias, as redes sociais — todos temos responsabilidade sobre os holofotes que acendemos.

E, mais do que nunca, é hora de escolher onde colocamos nossa luz.

Porque ser humano não é só sobreviver.

É também não se corromper diante do que choca, não glamourizar o que deveria nos envergonhar, não premiar o que destrói.

No fim das contas…

A humanidade nunca esteve tão desumanizada como agora.

E talvez, mais do que um novo roteiro, uma nova série ou uma nova tendência, o que precisamos mesmo é de uma nova consciência sobre o que significa viver em sociedade.

Porque o mundo que estamos tentando mudar é feito pelas mesmas mãos que hoje o sustentam.

Inclusive, as nossas.

Edição 244

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